MEU PRIMEIRO BORADO DE MUNDO
"Meu primeiro bordado de mundo nasceu de alinhavos e ornamentos. A escrita é marcada pelo mergulho da autora em suas próprias águas, por texturas do fazer manual e pelas andanças até encontrar a sua voz. É na poesia que Flávia se reconhece peregrina ao pastorear ovelhas que lhe oferecem lãs. Dos altos montes às vastas planícies, o corpo vivente se desloca no fio espiral do tempo. Eis a precisão da palavra de quem se tece ao cantar. Ao casear as próprias vestes, a autora revela os passos neste manual de tecelagem." Zinumai Valf (tecedeira beduína)
[Entre colchetes]
SOBRE OS MISTÉRIOS DO AMOR
"O amor é o astrolábio dos mistérios de Deus."
Jalal ud-Din Rūmī
Se a poesia nos permite acessar a suspensão do tempo – quando passado, presente e futuro dançam entre si -, a memória é a grande aliada da linguagem, matéria-prima fundamental para o poema. Consciente dessa fusão de tempos (e espaços), a poeta Flávia Muniz Cirilo, utiliza o amor como bússola para guiar seus passos, testemunhas de um percurso poético banhado em lirismo. A poeta entoa sensações, sentimentos e experimentações marcadas no corpo físico e no corpo transcendental. Os caminhos são abertos por lágrimas que escorrem pelas cavidades do instante: "E tanta água correu até que eu virasse oceano. / Revelo-me nestas maresias."
Assim, para capturar seu canto, é preciso se deixar afogar em lágrimas, suores, salivas, sem receio da imersão. Os poemas desse livro podem ser lidos como uma longa carta de amor ao tempo, cantos de rezo permeados de silêncios tardios: "Para esquecer teu rosto fiz um inventário de pequenas mágoas. / Para esquecer teu jeito inventei um monstro de grandes tentáculos." O ser amado - reinventado entre os versos - é presença e motivo de cantos e prantos, reminiscências de gestos perdidos no tempo: "Ao desejar-te tanto / liberto garrafas ao mar / e hei de saber-me estrangeira à espera das marés cheias, ondas oceânicas".
Ao ler os versos de [Entre colchetes] a memória me trouxe o canto do "mistério da necessidade" de Ericson Pires (1971-2012): "aquele que escreve é / também aquele que / é escrito". No mesmo instante em que reescreve seu amor em versos, a poeta é escrita pelos próprios escritos, revelando-se a si própria como parte da Unidade: "E não sou eu a contar o tempo no calendário que carrega os dias. / O tempo é que me conta no inevitável acontecimento do viver."
Flávia Muniz Cirilo carrega em sua escrita a urgência de ocupar os espaços com a própria história, a necessidade de nadar no tempo e preservar o silêncio - para, então, gritar pelos cantos a flama da paixão e o brilho do amor (ainda que perdido), e nos lembrar que a vida é líquida, muitas vezes escorre pelas mãos.
Ramon Nunes Mello
PREFÁCIO
[Entre colchetes] é um livro de amor. Este, junto à palavra escrita, compõe o fio condutor da obra de Flávia Muniz Cirilo. Aqui, o olhar sensível da autora apresenta-se potencializado, e Flávia oferece composições que impactam e contagiam o leitor, mobilizando seus afetos com as sensações de êxtase e intensidade, conforme o fervor e a entrega da própria voz poética de seus textos. A conjunção de versos sonoros e do tom sacralizante demonstram maturidade e o pleno domínio do trabalho com as palavras. Ao fazer fervorosas declarações ao amado e tematizar um amor marcado pela distância e pela espera, Flávia imprime aos poemas uma intensidade que provoca maravilhamentos no leitor, resgatando a experiência extática com o poético.
Com textos repletos de referências que abarcam desde os textos bíblicos até a lírica medieval das cantigas de amigo, a autora aprimora o trato com as palavras e a linguagem e envolve as temáticas por uma atmosfera lusitana que atravessa muitos dos poemas aqui presentes. Tomada pela intensidade do fervor passional e pela angústia da falta, a voz poética de [Entre colchetes] se utiliza da palavra para convocar lembranças e rememorações, no intuito de abreviar a invariável lentidão do tempo de espera pelo encontro com o amado. É assim que, na esteira da construção de memória, a palavra, no texto de Flávia, funciona como um meio de resgatar vivências, de exaltar o amante e de encurtar a lacuna temporal que os separa do encontro.
Com versos imagéticos e plenos de sonoridade e rimas internas, alternando a primeira e a terceira pessoa do discurso, a poesia de Flávia apropria-se da sintaxe portuguesa, o que resulta na construção de toda uma atmosfera que remete à cultura lusa. Contribui para tal o uso da segunda pessoa, que marca a interlocução direta com o amado, como nas cartas, e que implica a conjugação dos verbos de acordo com o pronome pessoal tu, não usual no português brasileiro e, neste contexto, remontando à poéticas tradicionais, anteriores ao século XX, e ao falar e escrever de Portugal. O uso recorrente da forma do gerúndio ao modo português, como nos versos “a desflorar o paradoxo renitente” e “tuas mãos a desenhar-me / meu rosto a clarear a noite”, constitui uma marca linguística da escrita de Flávia em [Entre colchetes], enfatizando o tom lusófono deste conjunto de poemas.
Sendo o amor temática central, este se desdobra em diversificadas facetas, marcado de forma constante pela visceralidade, pois é, frequentemente, associado à loucura. Aqui, aquele que ama carrega uma “sanidade louca”, insensatez e desatinos, alimentando absurdas quimeras, como nos poemas “Indagações” e “Filamentos”, que apontam para o caráter irrefreável com que Flávia define a experiência amorosa, utilizando-se de termos e vocábulos que tangenciam o campo semântico da loucura. Sendo o amor marcado, predominantemente, pelo fervor e pelo arrebatamento, tornam-se referência inegável – talvez a mais fortemente presente no livro – as Cartas Portuguesas, escritas no século XVII pela freira Mariana Alcoforado para o oficial francês De Chamilly, já que os poemas de [Entre colchetes] apresentam o mesmo tom de idolatria em relação ao amado, o sentimento de urgência pelo encontro e a utilização de vocábulos hiperbólicos, também encontrados nas cartas da religiosa para seu amado. Além disso, são recorrentes as menções ao gênero epistolar, o que também remete às Cartas portuguesas, visto que, assim como na obra atribuída a Mariana Alcoforado, as cartas, em [Entre colchetes], constituem-se em recurso para externar sentimentos extremos e aproximar-se do amante.
Na obra de Flávia, tal intensidade materializa-se, ora, pela via do erótico, do amor carnal – como em “Carta-poema”, “Teorema do amor irrefreável” e “Poema nascido das vísceras” -, ora pela elevação sublime que o equipara a divindades de toda forma, como em “Amo amar nosso amor”. Ao apropriar-se de um tom solene, a poeta inscreve o amor no contexto do sagrado, aproximando-o do divino e suas imediações, Ela retoma a tradição clássica na abordagem da temática amorosa, ao passo que, em movimento inverso, profana a experiência do amor, ao trazê-la para a esfera física da vivência do corpo, configurando um trânsito entre as tradições romântica e pagã dessa temática.
Por outro lado, a relação amorosa é mediada, aqui, pelo próprio poema, pelo verbo, pela palavra, pois é esta que expressa (ou tenta expressar) o amor tematizado na obra. Ao longo da leitura, observa-se que, para além da lógica de que o amor é combustível para a palavra escrita, esta torna-se matéria-prima para a construção literária da temática amorosa, trazida, em [Entre colchetes], como puro sentimento, regido por intensidades que o texto se ocupa de dizer. Desse modo, estabelece-se uma relação de retroalimentação entre poesia e fervor amoroso, a palavra funcionando, aqui, como ferramenta de registro e inscrição de tão elevadas experiências.
A presença do elemento água é marcante e provém o texto de uma profusão de imagens que se desdobram deste elemento da natureza, tais como oceanos, rios, mares e marés, ora remetendo à distância do ser amado, ora ao estado emocional da poeta e ao caráter dinâmico e mutável da própria vida. Flávia convoca a imagem de navios e embarcações como pontes para o encurtamento da distância e para o encontro com o amado. O campo imagético inscrito sob o signo da água remonta à tradição literária portuguesa – o oceano e a dor da saudade ocupando um lugar de destaque, remetendo o leitor à épica de Camões e à lírica de Pessoa.
Dada a distância entre a voz poética e seu interlocutor, a palavra assume um papel de aproximar os amantes através da sondagem da memória, construída e reconstruída pelo verbo, no intuito de apaziguar a inquietação e angústia que acometem a voz que escreve. Nesse processo, a poeta tematiza o tempo, a memória, a distância e o autoconhecimento, assumindo um viés reflexivo que invade um texto repleto de impulsos, pois, na poesia de [Entre colchetes], o amor provoca os sentidos e os poemas são inevitáveis e nascem das vísceras.
Assim, se, de início, constata-se a obra como um livro de amor, este deságua na a aventura da busca da compreensão de si mesma, a celebração e as lembranças do amor desembocando em uma viagem rumo ao autoconhecimento em que a poeta se torna desbravadora de seu próprio país, terra, continente, lugares onde jamais houvesse pisado, tudo isso vertendo-se em metáforas do próprio eu que a poeta descobre, à medida que escreve, aprofundando a sondagem de temas universais. Marés cheias e ondas oceânicas tornam-se, aqui, figurações para o tempo bom ansiado pela voz poética.
A viagem, em [Entre colchetes], assume o duplo viés de um meio de encontrar o ser amado, suprimindo a dolorosa distância, e de conhecer-se a si mesma, convocando outra obra da tradição, desta vez a emblemática Odisseia, havendo, inclusive, a menção ao nome de Ulisses em um dos poemas e figurações da imagem da teia, do tecido, do tear, que podem ser lidas como referências à figura de Penélope e seu bordado na obra de Homero.
O aspecto do feminino também adquire importância, ocupando espaços nos eixos temático e formal. Ao longo da obra, fica clara a presença da voz poética feminina. A poeta se apresenta como poetisa, em autorreferência que remonta a antigas tradições, recusando a contemporaneidade da nomeação de poeta para uma mulher fazedora de versos. A identidade feminina e a feminilidade são afirmadas, também, quando se tornam temas de poemas como “Deusa” e “Mulher”. Neste, escrito em primeira pessoa, Flávia mobiliza novamente imagens circunscritas ao campo simbólico da água como elemento ligado à fluidez, à maleabilidade, ao feminino e à maternidade, apresentando a mulher como “fonte, fluxo, ventre, casa”. No poema “Deusa” – como em outros momentos –, Flávia afirma o teor confessional de seus poemas e enfatiza a mulher amante, associada a divindades.
Com [Entre colchetes], Flávia Muniz Cirilo explora os limites da matéria-prima da poesia, extraindo do verbo potências sonoras e imagéticas que configuram deleite e determinam a fruição de seu leitor. Na tentativa de traduzir o fervor amoroso por uma palavra que se mostra insuficiente para a tarefa de dar conta desta experiência, a poeta recorre aos artifícios possíveis da linguagem, resultando em uma poesia fluida e potente, sensível e forte com versos sonoros e bem construídos. Nos poemas de [Entre colchetes], Flávia supera a si mesma e apresenta composições que, certamente, serão fonte de uma experiência de impacto e encantamento para os amantes da palavra escrita.
Fernanda Shcolnik
POSFÁCIO
"Tudo que a memória amou, já ficou eterno"
(Adélia Prado)
O amor ocupa um eixo vital nas dobras das lembranças. Falar de amor é indispensável para ecoar vida ao sol e saborear a luz da lua. Quantas árvores, ou pedras, ou ainda insetos, répteis e mamíferos vibram seus resquícios em nossas células? Seria a capacidade de amar um atributo que nos faz respirar a mesma frequência de um outro ser vivo, mesmo que de outra espécie? Arrisco-me a dizer que amor e ancestralidade desenham ritmos e colorem formas densas e sutis em nossos corpos.
Bachelard nos convida a observar a relação onírica que podemos atingir com as memórias, nos dizendo que "pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos". E completa lançando uma flecha de construção de futuro quando afirma que "todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova".
Minhas memórias de Flávia tocam os pés na Terra, sua musicalidade me encantou e nosso primeiro encontro artístico se deu quando fiz a direção do movimento e preparação corporal do show "Descalços sobre a Terra". De lá pra cá, a amizade e o convívio fortaleceram nosso elo: trocamos cartas enquanto, cada uma a seu tempo, pisou em pedras portuguesas; nos encontramos em saraus, rodas de amigos e festas. A investigação de caráter etnográfico, que permeia seu processo de criação, no diálogo com a "Carta da Terra" (Declaração de princípios éticos para a construção de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica), pulveriza nas suas letras de canções e nos seus poemas um compromisso com a edificação de uma ética ambiental na sua arte.
O poema aqui é uma porta para a transmutação. Poemas que mais parecem sopros de vozes regidas pelo tempo cósmico, pelos ponteiros extraordinários. Palavras que se aventuram e se equilibram no avesso da dor e dançam por entre os perigos de se deixar amar e ser amado. Essa poética de uma memória do amor evoca um espaço habitado pela nossa capacidade de produzir encontros em teias relacionais, onde o passado e o futuro entretecem com o presente do instante.
Debruçar-se nas sensações do tema do Amor e das Paixões pode parecer clichê e óbvio, no entanto é tão necessário que se torna um gesto sublime de quem se curva a este nobre sentimento. A memória poetizada libera nossa linguagem de possíveis amarras, causa torções e co-moções em nossa imaginação. A poesia distrai o automatismo, atrita o jogo das representações.
Flávia Muniz Cirilo, em seu mais novo livro de poemas [Entre Colchetes], encharca as palavras de paixões. A qualidade brincante de sua rima revela um humor que tem raízes de rigor em fibras entrelaçadas na fé. Diante dos tempos que atravessamos em nosso atual ciclo histórico, dedicar-se ao amor torna-se uma atitude política generosa e ajustada. Na beira do amor, os poemas se lançam com bravura nas feições de uma memória vivida sem medo.
Aline Bernardi
BÁRBARA E A BALEIA
“Nascer é a passagem do estado líquido para o gasoso”. A frase, pinçada das primeiras páginas de “Bárbara e a baleia”, diz a alma do livro – história que flui líquida (a água, o sangue, a mãe) em direção ao etéreo (o ar, toda a humanidade).O crescimento da menina que se imaginava filha de baleia com navio é tocado com sensibilidade por Flávia Muniz Cirilo, partindo dos movimentos mais interiores da personagem até o eco que eles produzem sobre o mundo.”
Leonardo Lichotte
Em suas mãos, o exercício de construir a vitória sobre o abandono, graças à verdejante coragem encontrada no alto das árvores e ajoelhada ao pé das palavras, com tal força criativa que faz jorrar de mim palavras de Bárbara e da Baleia. Flávia Muniz sabe que se o amor (este outro nome das políticas públicas e dos direitos e deveres humanos, entre eles o primordial desafio-direito, o da Comunicação) cabe bem na casa dos fonemas, é na maneira como contamos a nossa história que criamos nosso destino e o do coletivo-embarcação que é a sociedade. Ela faz a pergunta-raiz-rizoma que muitos desistiram de fazer: porque-o-sofrimento? É assim que feita de nenhum silêncio, à busca da voz da Mãe Terra, a menina Bárbara-nós encontra como fazer o amor espalhar-se até o horizonte, inventar outros mundos e superar o entreaberto das feridas humanas, que, claro, não pode ser curado pelo consumo. Este livro é uma linda lição e uma surpreendente escrita-testemunha de que podemos ser mamíferos-caravela a navegar na abundância da terra, na fartura de alimentos, na região dos desejos sustentáveis e democráticos que fazem o peito bater vivo na alegria dos olhos. Como Flávia bem diz, com o sol sobre a consciência e o fogo em seu coração: gargalhemos alegrias, comamos vegetais e cuidemos de nossos filhos com a cantiga de roda de nossos ancestrais, pois assim “Eu proclamo outro mundo”.
Evandro Ouriques
O começo de uma história se assemelha a um nascimento. Compreender o mundo é função do ser humano, esta espécie em extinção. Buscar nos animais nossa contraparte divina é a forma mais simples de se conhecer. De todos os mamíferos, o maior deles é a baleia – este ser aquático como os botos-tucuxis que emergem para atrair os homens de volta às águas. A natureza humana é celestial e aquática. Tanto os céus quanto os mares nos fascinam e nem sabemos por quê. A baleia é a voz da Mãe Terra. A Terra que sobrenada em dois terços de água, é o macrocosmo de nosso corpo aquoso. Os dias são líquidos e escorremos sobre eles como placas tectônicas sobre o magma. Compreender, compreender tudo, é o destino dos homens. Destino, missão, fado. Aos mares lançaram-se os portugueses em busca de horizontes. Sua terra tão franzina fez com que quisessem conquistar o mundo. É o mesmo que fazem os homens em sua ânsia pelo mar. Um amor deve alargar – alargar horizontes, alargar vidas, abrir portas, enseadas, baías, descer rios, encostas, enfrentar abismos, escalar montanhas, quantas descobertas, meu Deus! São todas essas descobertas que fazem parte do mundo de Bárbara, que, até pelo nome, já nasceu desbravadora. Por que a escrita, por que os sentimentos, por que as bombas, por que as guerras, por que as causas humanas, por que tudo isso que faz parte da vida humana? São muitas as línguas e os alfabetos existentes no mundo, mas se todos são provenientes da mesma raiz, a língua comum existente é o amor. O amor é a maior descoberta. Para isso vivem os homens – para amar e ser amados – e descobrir o preço e o custo desse amor, nem que seja à custa de muito sofrimento. A redenção de todas as dores, pelo renascimento nas águas, de onde vieram, certamente.
Thereza Christina Rocque da Motta
POSFÁCIO-CARTA
Oi Flávia, aproveitei o final de semana de Halloween por aqui para ler o livro, gostei bastante, mas acho que acrescentar um comentário específico sobre HIV, no tom biomédico em que normalmente escrevo, vai estragar e não ajudar o trabalho. Acho que os comentários que já constam do livro são muito apropriados, o mais longo deles, poético, como o livro em si. Sigo muito a teoria do Nijinsky, o grande bailarino russo, que uma vez respondeu a um jornalista que se soubesse traduzir em palavras o que é a dança, não dançava, da mesma forma, traduzir em linguagem cartesiana o que esta expresso em linguagem poética, e mesmo mítica, só faz estragar o original, que é sempre bem melhor e mais criativo do que a eventual paráfrase, parabéns e sucesso ao livro, daqui de Providence, bom feriado aí, que é o Haloween aqui!, Chico
Francisco I. Pinkusfeld M. Bastos, MD, PhD Pesquisador Senior FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz.
VILAREJO - PERGAMINHO DO FOGO
Em Vilarejo (Pergaminho do fogo), nos deparamos com toda a sensibilidade da poeta Flávia Muniz. Partindo do vasculhar da memória, Flávia tece reflexões que adentram questões essenciais ao ser humano, em meio às quais surge a contação de uma história – a do Vilarejo, espécie de lugar utópico em que nasce o homem ético e digno. Mas o que sobressai, invariavelmente, é a força da palavra escrita. A palavra-fagulha, escrita-labareda, engendra a própria arte, de que Flávia indaga o sentido ou missão. O combustível é a liberdade, e a poesia se faz em exaltação do agora, do tempo-hoje. Soma-se a ideias convictas – Viver é mais que batimentos cardíacos [“Dança do tempo”] – uma explosão de imagens fortes – Amor é desaguar marés [“Escritos espirais na rota do amanhecer”] e Desfaço-me dos fios de lágrimas do tempo [“A evolução”] –, o intuitivo e o racional celebrando a vida em um êxtase dominado por uma força criativa consistente. Se pelas leis do poeta a imaginação não tem paredes, resta ao leitor o convite a essa viagem pelo mundo sem fronteiras das palavras de Flávia Muniz.
Fernanda Shcolnik
Flávia Muniz, o canto além da voz
A Literatura Brasileira nos remete aos tempos infinitos. Tempos que não começam nem terminam em código estabelecido. Aliás, toda boa literatura é atemporal, como sabemos. Talvez daí venha a minha parcial discordância com a necessidade acadêmica de catalogação dos escritores, por geração. Há que se perceber, entretanto, a literatura como um único vetor. Mesmo quando se desdobra em outras artes. Por isso, não quero analisar este primeiro livro de Flávia Muniz, à luz da já denominada Literatura 00, ou seja, a literatura que começa a despontar no século XXI. Exatamente porque não creio que as Teorias da Literatura precisem funcionar como um tipo de autópsia anterior ao texto. Por um único motivo: não se faz autópsia de organismo vivo. E a Literatura é um organismo vivo, antes e depois da escrita.
Cantora e compositora de boa cepa, transitando com personalidade na Música Brasileira Contemporânea, Flávia prepara o fundamento dos seus textos numa poesia que poderia muito bem ser revertida ao estado de miniconto que, segundo José Eduardo Degrazia, tem nas prosas de Baudelaire, um dos principais eixos fundadores do ponto de vista teórico. Ao contrário do que pensam alguns, miniconto não tem limite de frases ou mesmo parágrafos. Pode ter uma única frase ou uma lauda. O que define o miniconto, na verdade, é o fato de se constituir em objeto de teoria da literatura, a partir da própria obra. Mas a teoria de uma literatura nos tempos de web, ainda engatinha, apesar das muitas teses ensaios e monografias. Flávia sabe muito bem em que terrenos da linguagem está entrando. Sabe ainda do mundo onde mergulha suas emoções mais suaves - e também as mais afeitas aos impactos. Sabe que na literatura como na vida, o que sempre será fundamental o nosso direito de escolha. Das melhores palavras, aos melhores caminhos. Por isso, vai conjugando sem pressa na literatura. Seu texto desponta carregado de significado. Denso que só uma estrela no céu de dezembro. Despontando para leituras atentas, ávidas por novas descobertas. Um trabalho de muitas artesanias que nos parece beber sempre nas melhores fontes, sejam elas contemporâneas ou clássicas. Estamos diante de uma literatura que não se contém diante das distâncias e passa a cumprir uma estética de adensamento do vazio existente entre os diversos pólos criativos da mente. Enfim, um texto de leitura agradável e ritmo instigante. Como se o “maculelê” do verso ousasse a batida do eixo, no itinerário da imagem que se cria a partir dele. Flávia Muniz desafia esses paradigmas e estabelece, também, a sua própria teoria a partir de uma prática que se mostra nas suas escolhas para a construção do texto.
Flávia não sofre do “mal” que Antônio Cândido chama de ilusão antropocêntrica. Seus textos esmiúçam a condição humana, trafegando da filosofia à poesia, do masculino ao feminino. Do emocional e do racional. Tudo está contido na expressão do significado e da forma de organizar as palavras. Ela se reconhece múltipla e multiplica suas possibilidades ao demonstrar o que isso significa enquanto foco elementar de uma narrativa. Quer um exemplo? Veja este fragmento: “Desvendando os mistérios do homem que sou, procuro manter-me quieto. Sou fotógrafo de almas. Observo humanos: esquinas de gente e olhar de gente. Mão e antebraço antes mesmo de nomes. Solidariedade: meu lugar de palavra e oração. Ajoelho-me no sal da Terra.” (ESCRITOS ESPIRAIS NA ROTA DO AMANHECER, II). Essa noção de espaço deu à Flávia uma definição de que as coisas são o que as solfeja. Eis uma literatura que reconhece, mas não se curva aos cânones. Tem autonomia e proclama seus próprios rumos elaborando frases curtas, de forte impacto acústico e ritmo acelerado. Bebe em Borges, com certeza, um certo telurismo fantástico, mas, absolutamente urbano e futurista. Ela nos chega num momento em que as mídias tradicionais estabelecem uma luta corporal, de vida ou morte com a cibercultura, tornando-se parte dela. “No século XXI, todo texto se torna um arquivo virtual, nos diz N. kathetrine Hayles, em “Literatura Eletrônica – Novos Horizontes para o literário (UPF Editora). Ela faz parte de uma geração que, a partir da web, passou a estabelecer um novo tipo de relação com o saber em qualquer setor da vida racional ou transracional. Algo atemporal e ao mesmo tempo, duramente estabelecido num ponto eqüidistante entre o passado e o futuro. Poderia dizer que é um bom exemplo do quanto os jovens escritores e escritoras brasileiras, estão cerzindo seus bordados na memória de uma literatura que guarda nomes expressivos, mas que jamais demonstrou sinais de falência.
"Para morder estrelas deve-se espanar a poeira do peito e afiar os dentes em pedras de amolar facas. Andarilhos das noites, descalçamos o chão dos céus. O sol é maior que a Terra. O infinito é maior que o sol. Os humanos carregam pequenas certezas. A dor hermana e funde o núcleo do ser – ele espreguiça." Enfim, o livro de Flávia Muniz. Vilarejo – pergaminho do fogo, já revela uma escritora que soube estabelecer-se entre o delírio criativo e a ciência de compor um texto de reconhecida substância literária. Estamos diante de uma leitura que poderá ser realizada com todos os olhares que determinam a nossa condição humana. Uma literaturas que esmurra o comodismo de repetir fórmulas, buscando se afirmar nos próprios e inúmeros rumos.
Lau Siqueira
VERDE MADURO
Flávia e Cecília são duas, mas são a mesma, porque todos somos o mesmo cálculo, um cálculo poético feito de encantamento, desejo, coragem e gratidão. E se não somos, seria lindo se fôssemos. Cecília é entrecortada e dessabida, vive de deslembrar e de desacontecer. Falta certeza a ela como falta às crianças, que se encantam tanto mas tanto com as penas de passarinho que acham no quintal, com a mãe, caída no meio da sala, com tudo que o t-u-d-o pode dar, que nunca vão ficar entediadas. E a Cecília não vai se cansar, nem vai parar, nem vai perder o brilhão nos olhos, um brilho que se nos faltar é como se nos faltasse ar, nos faltasse sonhos. Então, ser Flávia, que é ser Cecília, que é ser o verde maduro delas – um livro que é gente como você e eu – é assinalar e ao mesmo tempo esconder, dar mais mistério ao segredo do mundo e da vida – porque a vida é segredo e mistério, sabemos. E ser dessabido e ser brilhoso é andar com as solas dos pés curiosas, que é o melhor jeito de continuar caminhando e transformar caminhada em descoberta.
Heyk Pimenta é poeta
Tão permeado de natureza; o lugar onde a narração da escritora, Flávia Muniz Cirilo fixa na sua novela “Verde Maduro” talvez não seja um lugar rural, um sítio, mas um “estado” natural de ser e estar no mundo. Localizar parentes não seria a priori necessário, mas olhar através dos aspectos poéticos como se constrói identidades através deles. A narradora, Cecília, no seio de sua família reconhece nomes mais próximos de seu ser, outros se farão como signos da ausência. O pai com seu escangalho na cabeça: um misto de oclusão e presença atina na filha sinas de faltas. A mãe, raiz de garra aterra a filha a vocação do existir feminino. O irmão Barnabé sublima em Cecília tons de melancolia em estados de não pertencimento de lugar. O outro irmão esconjura a loucura com cálculos matemáticos. Cecília no jardim onde tem uma árvore aprende a ler e identificar os sinais de sua vida pela semântica não só das palavras que inicia o domínio, mas correlacionar eventos ao amar, que ela vê brotar por Aquiles, mas que tem sempre algum ponto nevrálgico. A linguagem de Flávia Muniz Cirilo atinge um lirismo cheio de conotações sutis entre dito e não dito (oculto em dobras de metáforas campestres).
Fernando Andrade
JOANA E ALTAMIRA
As copas das árvores se levam pelo o movimento porque o vento sopra. Por isso o bambu tem um tilintar, as sementes voam e os pássaros descansam suas asas. A máquina de escrever marca o tempo de cada letra porque tem estória. Tem pergunta, porque tem curiosidade. Tem resposta, porque tem imaginação. Voa semente do bico dos pássaros e da força do vento. Voa imaginação para tudo que não tem explicação, ou se já tem, pode ter outra.
[É porque o vento sopra que as copas das árvores se levam pelo movimento. É por isso que o bambu tem um tilintar, que as sementes voam e os pássaros descansam suas asas. É porque tem estória que a máquina de escrever marca o tempo de cada letra. É porque tem curiosidade que tem pergunta. É porque tem resposta que tem imaginação. Voa semente do bico dos pássaros e da força do vento. Voa imaginação para tudo que não tem explicação, ou que se já tem, pode ter outra.]
Joana e Altamira. Filha e mãe. Uma quer ser máquina de escrever e a outra tem o alvo, aponta e acerta a mira. Este é um livro de utensílios modernos e arco e flecha? Não, neste livro não cabe a realidade mecânica de um utensílio moderno, nem a linha reta de uma flecha rumo ao alvo.
Neste livro cabe a imaginação que surge como um sopro contínuo de vento. Mas para o vento soprar poesia, os pés de Joana estão bem apoiados no chão. Ela tem raiz, é quase árvore, ama a Terra, se preocupa, entende que sua existência depende da boa saúde do meio ambiente. Quer ser poeta pés na Terra e rumo às estrelas, ao som da máquina de escrever, que registra a possibilidade e a impossibilidade de contar todas as estórias do mundo e a vontade de compilar toda a curiosidade. Como descrever os detalhes, que não estão aos olhos de quem vê por simplesmente olhar? Joana tem as lentes da imaginação, o mundo que enxerga é um mundo que está além do cotidiano. Pergunta, descobre e faz eucalipto virar verbo e poema: “Eucalipto, tu caliptas, ele calipta,...”
Altamira, mãe de Joana, é tiro certeiro. Sabe contar a estória certa no momento certo. Daquelas estórias que ajudam a entender um pedacinho da vida. É mulher simples que conta por que tem boca e vivência, seu dicionário é sua sensibilidade e seu livro é de cabeceira, daqueles de consultar todo dia.
Uma menina que sonha em ser máquina de escrever, principalmente sonha. Pode perguntar tudo e pode inventar estórias. Não seria Joana a nossa parte mais feliz?
Fabiana Pinho